A Mulher Feliz
Algo diferente aconteceu. Aquele momento, que tantas vezes se repetira religiosamente igual, parecia agora diferente. Seria ela feliz? Claro! Tinha dois filhos saudáveis, um marido atencioso, um emprego estável... Mas seria ela feliz? A pergunta que tantas vezes rondara seus pensamentos e fora sempre respondida de forma rápida e automática não queria ir embora. Tudo estava da mesma forma há anos, não havia porque mudar. A pergunta persistia. Tentou agarrar-se novamente aos argumentos que sempre lhe foram convincentes: os dois filhos, belos, saudáveis, atléticos, já estavam na faculdade, trabalhavam, moravam fora de casa, eram independentes. Foram muito bem educados, orgulhou-se. O marido, nesses vinte e nove anos em que estavam juntos, sempre lhe fora fiel, tentava ser atencioso, ouvia-a. _ Letícia, seu marido vale ouro!_ diziam as amigas. E o emprego? Já perdera as contas de quanto tempo estava naquela repartição. Salário bom, estabilidade. “_Trabalho assim não é pra qualquer um, você tem sorte...” . Será? Sim, tinha que ser! Esqueceria tudo aquilo. Acendeu um cigarro, serviu um brandy. Algo parecia fora do lugar. Por que logo agora se questionar? Olhou para o marido, que dormia. Mas ele era tão bom! Por quê? A imagem daquela mulher veio-lhe à mente. Tão bela, tão jovem. Olhos tão negros, sobrancelhas tão vivas. Desde que a vira pela primeira vez não conseguiu tirá-la da mente. Fantasiava como seria tocar aquela pele, beijar aquela boca, apertar aqueles seios. Olhou-se nos espelho. Sentiu-se velha. O verde dos olhos não parecia mais tão intenso. A pele já não tinha elasticidade. Ela não seria mulher para a outra. Nem poderia. Onde já se viu? Ela tinha um marido. Mas por que não? Jogou água no rosto. Queria livrar-se dos pensamentos, da marca dos anos, da imagem que construíra. E se não fosse feliz? Tinha que ser! Onde errara? Estudara com as freiras, casara-se virgem, dedicara-se à família, sempre fora fiel. Mesmo aquele rapaz tendo-lhe tirado o sono anos atrás, mesmo com a presença daquela moça agora, sempre fora fiel. Exemplo de mãe, esposa e mulher. Por que, por que, por quê? Há muito tempo não sabia o que era o gozo, mas e daí? Ele era um bom marido. Os filhos já não ligavam com tanta freqüência, e daí? Já eram homens! O trabalho não era prazeroso, mas já estava para se aposentar. Tudo parecia tão em ordem, tão perfeito; ela não queria. Jogou-se na rede e mirou o céu. O mesmo, desde quando se lembrava. Nada, nada, nada saíra do lugar. Um dia ela tivera um sonho: sair num balão amarelo e preto e voar todo o mundo, ver outros povos, outros rostos, outras vidas.... Aqueles olhos voltaram à sua mente. A lembrança do balão se foi e a mulher veio. Estava linda, a boca vermelha, os seios no decote lhe convidavam. Sentiu-se desconfortável. Não podia pensar naquilo. Meu Deus? Por que isso agora? Não estava tudo tão feliz? Estava? Não sabia. Naquele momento a única certeza que tinha era a de que queria se sentir livre, ao menos um segundo, estar no balão, aquele do sonho. Chorou. Lágrimas ácidas. Tentou justificar com a bebida. Sempre fora fraca para o álcool. Sabia porém que havia algo mais naquele choro. Sentiu o peso de Ter que corresponder às expectativas, de Ter que ser a mãe, a esposa, a funcionária exemplar. Desejou só por um instante ser ela mesma. Quis poder sentir-se dona de si, dona do seu corpo, dona do seu prazer, do seu sexo, quis sentir-se mulher. Mas não podia mais. Já não era apenas ela. E se não fosse feliz? E se ela errasse? E se fosse infiel? Não! Não podia! Mas por que não? Aquela pergunta lhe doía. Não tinha respostas. De uma coisa tinha certeza: fizera tudo certo! Certo? Pra quem? Quem ditara as normas? Viu naquele instante o quanto suas certezas eram fugidias, o quanto estava perdida. Iria mudar. Faria diferente. Trairia o marido, esqueceria os filhos, faltaria ao emprego. Estava decidida. Mas, e depois? Lembrou que era covarde. Não teria forças para romper com tudo, ainda tinha uma imagem. Pra quê? Não sabia, mas era sua. Continuava confusa. Viu uma estrela cadente. Desejou ver-se livre das inquietações . Cansada, tomou dois comprimidos para dormir, deitou-se ao lado do marido e rezou para que ao amanhecer voltasse a ser feliz, insuportavelmente feliz.
17 de junho de 2004
* Hoje foi a vez do Vítor, semana que vem pode ser você! Escreva para nós: r.arcanjo88#gmail.com (substitua o # por @).
4 comentários:
excelente estreia para o dia do leitor, parabens vitor fernandes.
Excelente narrativa. Bem construída,empolgante,angustiante.
Por um momento senti as angústias da personagem.
Adorei!
Esse blog promete surpresas maravilhosas!
bizarro...meio atordoante...recheado de questoes...é pra deixar qq um em conflito consigo msm...
parabens, afinal o bom é aquilo q desconstroi...
O dia do leitor n poderia ter estréia melhor! Adorei o texto, Vitor!!!
Parabéns...
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