sábado, 6 de janeiro de 2007

A Venenosa por Simone Azevedo

LITERATURA

Li José de Alencar quando eu tinha 12 anos de idade. Histórias de época me encantavam, eu sempre quis vivenciar épocas e costumes diferentes. Fantasiava entrar em uma máquina do tempo e viajar. Fantasias infantis.
Oito anos depois, reli José de Alencar.Tornei-me mulher. A menina que existia em mim foi aprisionada pela bruxa má da maturidade em um calabouço frio e escuro. Às vezes, à noite, ela chora querendo sair, mas a terrível bruxa não permite que se liberte. Já não tenho fantasias infantis. Agora, minhas fantasias são outras. Nem um pouco infantis.Uma delas é viver em um mundo onde não haja discriminação. Homens e mulheres sendo igualmente considerados e respeitados. Sei que isso, mesmo em pleno século XXI, é mais que uma fantasia. É uma utopia. Esse lugar não existe. A mulher em que me transformei não gosta mais de José de Alencar.
O ilustre escritor José de Alencar, logo nas primeiras páginas de um de seus mais célebres romances, “Senhora” (1875), conta-nos que a sua heroína, Aurélia Camargo, moça que enriqueceu subitamente e que viveu uma grande e marcante decepção amorosa, acabou por herdar dos tempos difíceis um grave desvio de caráter.
Aurélia, depois de perder o seu amado para uma moça de melhor posição social, passou a raciocinar como um homem, “contrariando a natureza sensível e emocional da mulher”. A certa altura do livro, comenta o narrador: “Mas no lampejo dos seus grandes olhos pardos brilhavam as irradiações da inteligência. Operava-se nela uma revolução. O princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem”.
A perspectiva do romancista Alencar não é muito original. A esmagadora maioria dos homens do Brasil oitocentista pensava exatamente como o autor supracitado: mulheres são mais sensíveis, agem movidas pelo coração; homens são mais racionais, agem movidos pelo cérebro. Segundo a perspectiva dos sábios seres do sexo masculino, a “inteligência limitada” do sexo feminino apresenta maior compatibilidade com as atividades que exigem mais da intuição e da sensibilidade do que das capacidades intelectuais. Daí a “inclinação” da mulher para a música de sala, para o canto, para o desenho, para o bordado, para a decoração e para o magistério.
Podemos verificar essa visão generalizada nos demais romances da época. Em “A moreninha” e em “O moço loiro”, ambos de Joaquim Manoel de Macedo, em “Diva”, de José de Alencar, e em muitos outros, as heroínas dedicam-se ao piano, aprendem a receber as visitas com elegância e a falar bem para não envergonhar o esposo. São rigidamente educadas para manterem o lar bem cuidado e os filhos bem educados. “Essas são as tarefas de uma mulher honesta.”
Tais construções dizem respeito ao século XIX, porém, essa concepção machista enraizou-se profundamente no senso comum nacional. Por quase dois séculos habituamo-nos, com consciência ou não do absurdo que é, a associar a sensibilidade da mulher a um déficit de inteligência. É, portanto, improvável que, de uma hora para outra, tal associação desapareça do senso comum do brasileiro, por mais que, a cada dia, as mulheres venham conquistando seu espaço e mostrando sua superioridade.
Agora, preciso encerrar este artigo.Vou queimar meus livros de José de Alencar. Talvez eu queime alguns sutiãs também.

4 comentários:

Dami Monteiro disse...

Ei Simone...
Eh essa visão meio q retrógrada em relaçao as mulheres ainda permeia o senso comum, apesar de, mts vezes, mostrar-mos q somos capazes de fazer mt bem coisas q são julgadas "próprias para homens".
Sem duvidas ninguém merece mais esta discriminação um tanto q exacerbada.

Valeu pelos momentos pensantes =]
Bjus

Anônimo disse...

Queimemos nossos sutiãs!

:)

Simone querida, amei seu texto.
Obrigada pelo comentário das minhas divagações e pelos excelentes momentos de reflexão que seu texto agora me proporciona.

Beijooo grande

:**

Anônimo disse...

concordo com sua visão, principalmente que não será de uma vez que chegaremos a uma sociedade igualitária entre homens e mulheres. mas não acho totalmente depreciativo dizer que as mulheres são sensitivas, até porque isso não depende de um menor grau de inteligência. a meu ver mulheres tem sim um sentido a mais que os homens.

Simone Azevedo disse...

As mulheres tem um sentido a mais que os homens.O erro está em assiciar isso a um menor grau de inteligência.É contra essa ridícula associação que nós mulheres estamos lutando desde o dia em que nossas irmãs guerreiras queimaram seus sutiãs em praça pública.