sábado, 24 de março de 2007

A Venenosa por Simone Azevedo

Acerto de contas
Mais um sábado chegou. É dia de publicar mais uma coluna. Onde terá se escondido a minha Inspiração? Essa danada está brincando comigo. Rebeldia não é algo que eu costume tolerar. Ela sabe disso. Mas parece que não me dá ouvidos. Eu já avisei mil vezes que a colocaria de castigo e a proibiria de sair outra vez. Mas não adiantou. Travessa do que jeito que ela é...
“Travessuras ou gostosuras?” Sabiam, que ela me perguntou isso? Pois é, perguntou na maior cara de pau. Eu, obviamente, escolhi gostosuras. Estava muito a fim de escrever um texto bem gostoso essa semana, mas a minha Inspiração, traiçoeira e inconseqüente, aprontou uma travessura. Ainda ponho essa moleca de castigo. Tenho que deixar de ser tão boazinha, compreensiva e tolerante. Ela me mete em cada enrascada. Hoje mesmo, eu estou aqui, sentada na frente do computador, sem nada em mente para escrever. Ainda dou umas palmadas nessa criaturinha levada que me faz pagar esses micos. O que direi aos meus leitores? Com que cara vou ficar agora? Estou padecendo no paraíso, como diz o ditado. Mas onde estarão os coqueiros e o lago azul que há em todos os paraísos? Não vejo nenhum. Não vejo pessoas, não vejo acontecimentos, não vejo histórias, não vejo nada.
O relógio me mostra que meu tempo está se esgotando. E o tempo para que minha Inspiração chegue também. Ela vai ver só. Ah, se vai. Onde se meteu essa criatura quando eu mais preciso dela? Será que ela me abandonou para sempre? Ela está realmente demorando. Mas não é a primeira vez. Não vou mais me preocupar. Minha cabeça já está doendo. Ela que apareça quando quiser, mas quando aparecer irá se ver comigo. Ai, ai, ela não perde por esperar...
Olha só quem chegou. A danadinha!! Agora acertamos nossas contas. Aguardem meus caros leitores, vou pôr essa moça de castigo e já volto.
Pronto. Agora sim posso escrever a coluna dessa semana. Vamos lá...
No luxo e no lixo
Na rua onde moro há um supermercado. Dentro dele há tanta coisa gostosa. Biscoitos, doces, refrigerantes, bolos, queijos, enfim uma infinidade de guloseimas. O preço não é dos mais em conta, mas todo mês eu e minha mãe vamos até lá fazer umas comprinhas. Ela se preocupa com o essencial: arroz, feijão, carne, verduras e frutas. Eu, prefiro as seções de doces e chocolates.
Vejo muita gente comprando muita coisa. Minha mãe me disse que são pessoas ricas que podem gastar bastante dinheiro. Nós não somos ricas e não podemos comprar muita coisa. Mas compramos o suficiente para viver e até um pouco a mais para satisfazer a gula. Mas, de qualquer forma, com muito ou pouco dinheiro, fazer compras é muito bom.
Outro dia desses, quando terminávamos mais uma comprinha e íamos de volta para casa, cheias de sacolas, cantando e rindo alegremente, levando todas as coisas gostosas que tínhamos comprado, eu vi uma mulher pegando comida podre no lixo que fica nos fundos do supermercado. Fica nos fundos para que as pessoas que fazem compras não se sintam incomodadas com o mau cheiro e a sujeira. A mulher não se parecia com a minha mãe, mas também era mãe. Ela estava com duas crianças de aproximadamente quatro e dois anos. Estava suja, maltrapilha, fedia como o lixo que ela revirava. Perguntei a minha mãe por que aquela mulher não entrava no supermercado para comprar comida como nós fazemos. Minha mãe pensou, respirou fundo, e me respondeu. Depois do que minha mãe me respondeu, eu nunca mais enxerguei os nossos alegres momentos de compras como antes...
Moda: servidão do inútil, adoração ao descartável
Estar fashion, antenado, fazer parte do beautiful people é o desejo da sociedade pós-industrial. Objetos que produzem agitação frenética no seu entorno, envolvendo modelos, estilistas, artistas e jornalistas em uma infinidade de acontecimentos dos quais estão excluídos os comuns dos mortais. Design, marketing, shows e desfiles promocionais, colunas sociais, revistas especializadas, restaurantes e casas noturnas : este é o universo aparente da moda. Um mundo de flash, brilho, glamour e frisson.

Esse universo aparente não revela a verdadeira essência da moda. Ao contrário do que a imprensa transmite como um “tema” da seção de comportamento e um capítulo da sociedade do espetáculo, a moda é nada menos que uma máquina de inclusão/ exclusão com vínculos fortemente simbólicos e fracamente utilitários. Todo o glamour e o frisson que essa poderosa indústria vende forma o ambiente de afirmação do seu poder social em proporções sempre maiores do que o valor agregado às matérias-primas em insalubres oficinas no Bom Retiro ou em miseráveis comunas chinesas.

A ideologia burguesa intrinsecamente presente na imprensa ocidental contribui para o crescimento e fortificação dos milhares de tentáculos da indústria da moda. Como um gigantesco polvo, ela envolve e imobiliza suas presas deixando-as sob seu controle. Esse controle produz perversidade que vai das formas mais arcaicas de remuneração do trabalho (salário por peças, por exemplo, tão usual nos primórdios da revolução industrial e que permanece na cadeia da moda) à submissão do consumidor a essa modalidade de indexação de grupos sociais numa sociedade onde a individualidade há muito deixou de ser a dimensão subjetiva do sujeito.

Os modelos, que se assemelham a um exército anônimo de seres sem identidade -quase coisas, ditam o padrão ilusório de beleza. Não só uma questão de alienação, essa ditadura se tornou uma questão de saúde pública. Transtornos alimentares são cada vez mais comuns em homens e mulheres que perseguem um corpo perfeito e inalcançável tão valorizado pela mídia, pelos estilistas, pelo merchandising.

Um ciclone enfurecido que engole tudo e todos, fenômeno de proporções globais, a indústria da moda, a nova máquina mercante, entra em cena como um poder indestrutível. Por se fazer desejada sob uma máscara de necessária, ela absorve os corações e mentes da sociedade pós-industrial. Quem será capaz de manter-se ileso dessa enxurrada de inutilidades e não ser afetado pelo entorpecimento desse ópio pós-moderno que transverte o lixo em luxo?

4 comentários:

•.¸¸.ஐJenny Shecter disse...

Eis a sociedade do TER!
A vida pouco vale... mata-se por um tênis de marca! A inversão de valores é assustadoramente poderosa!
Até quando???

Anônimo disse...

Relaxa gente, um dia o capitalismo acaba. Pena que eu não estarei mais viva pra ver.

Dami Monteiro disse...

Eh vivemos numa realidade capitalista, essa que busca sempre "MAIS"...
Apesar de estar num meio suspeito hehe - publicidade - é evidente esse mar de desigualdades que presenciamos todos os dias.
Como Bru diz: "ATE QUANDO?!?!"

Marcela Rangel disse...

Minha querida, para começar devo comentar sobre o primeiro texto. Me senti muito enganada. Sim, isso mesmo. Afinal, se há alguém dotada de muita inspiração esse alguém é a Venenosa.

:)

O segundo texto expõe a triste realidade, e você a soube descrever muito bem. E, finalmente, o terceiro texto é brilhante! Saio do blog me perguntando: até que ponto uma roupa é SOMENTE uma roupa?