domingo, 11 de fevereiro de 2007

Dia do Leitor, hoje por Ton Lupes

Livro


Era uma noite dessas de verão. E lá estava eu onde aquele inesperado convite me levara. Ainda era cedo para o tal evento começar. E mal sabia eu que este tomaria dimensões que eu não imaginaria nem nas minhas alucinações mais absurdas.

Poucas pessoas se adentravam naquele salão a meia luz até o momento em que acendi meu primeiro cigarro da noite. Aquelas pessoas presentes ali eram tão estranhas a mim quanto eu a elas. Pensei por muitas vezes desistir da minha aventura naquele lugar obsoleto, diria até underground. Mas o público me parecia muito indiferente quanto a isso, e foi essa a principal causa da minha permanência.

Quando por fim tomei coragem de me enfurnar naquele recinto descobri o quão agradável era estar ali. As pessoas conversavam intensamente, não digo auditivamente, o volume não era desagradável, mas era notável a empolgação dos ali presentes. Fui até o bar e pedi uma vodca com gelo, bastante gelo, o calor era no mínimo significativo, ao menos para mim. Foi quando pedi ao barman minha terceira dose, que percebi os aplausos incessantes destinados a uma figura no pequeno palco escuro. O lugar estava repleto de pessoas, algumas muito bem arrumadas, outras nem tanto, assim como eu.

Logo uma melodia encheu o salão e tomou conta de todas as vozes e aplausos. As luzes ainda não haviam acendido, na escuridão só era possível enxergar alguns movimentos de uma sombra um tanto alta e imposta. Era uma melodia um pouco maluca, ou complexa demais. Às vezes me perdia e ficava mais confuso do que a vodca já me deixara. De repente o clima mudou totalmente. Uma luz vermelha iluminou o violinista, e a melodia por ele tocada parecia narrar a entrada de uma segunda interprete naquele estreito palco. Ela flutuou até perto do violino com uma rosa em uma das mãos, então pôs a outra mão no ombro do homem alto e se escondeu em suas costas. Passou a rosa suave e vagarosamente pela silhueta dele, até que o abraçou, e ele correspondeu sentindo seu abraço e entoando uma canção ainda mais romântica. Aquela linda mulher saiu de seu esconderijo e correu para uma parte escura do palco largando sua rosa pelo caminho a se despetalar no chão. Ouvi nesse momento começar o som mais harmonioso que eu já ouvira. Todo álcool em meu corpo se dissipara, era como um transe. Mal conseguiria descrever aquela musica, mas se me arriscasse diria que era no mínimo hipnotizante. Porém o indescritível mesmo ainda estava por vir. E então se iluminava aquela figura angelical que tocava uma harpa tão ornamentada que parecia ter decido dos céus diretamente àquele palco. E aquela luz vermelha se fundia com a outra luz agora acesa de cor violeta de tal forma que parecia o choque entre dois semideuses, dois seres divinos ou ao menos imortais. E aquela mulher era tão bela, tão magistral, tão feminina. Seus dedos acariciavam aquelas cordas com uma leveza tão sutil, que até mesmo a brisa do verão teria se estremecido diante de tal toque. Suas unhas eram perfeitas, como se tivessem sido esculpidas e coladas uma por uma e depois pintadas de uma azul cor de anoitecer. Em perfeita harmonia com seus cabelos loiros dourados e um rosto ainda coberto pela posição que ela se encontrava no palco.

Ninguém se movia. Não eram capazes de provocar nenhum ruído para não interromper um momento espetacular como aquele. Mas eu não me contive, simplesmente perdi as forças na mão que segurava o copo de vodca quando ela finalmente descobriu seu rosto e fitou o olhar na minha direção. Esse momento não durou mais de três segundos, mas a sua forma, seu olhar, sua boca, sua pele, entraram na minha mente mais rápido do que qualquer droga de um viciado em estagio avançado. E a musica parecia ter parado no exato momento em que meu copo encontrou o chão e se espatifou em centenas de pedaços brilhantes. Algumas pessoas até se atreveram a olhar para mim, mas a maioria ainda estava vidrada em toda aquela sintonia entre artistas e platéia. Naquele exato momento pensei em desaparecer, mas pensava também em mergulhar naquele palco e me submergir na melodia daquele anjo humanizado. Acabei não tendo nenhuma reação e continuei a ser fisgado por aquelas cordas tão afinadas. E logo que todos estavam novamente em plena transição entre real e fantasia a melodia tomou um rumo completamente inesperado. Era como uma disputa entre as almas, uma cavalgada através de campos inacabáveis em busca de algo que havia se perdido no caminho de volta, como se ambos os músicos desejassem a mesma coisa, mas não podiam dividi-la. Uma aflição invadiu meu coração, junto com um medo de me perder naquele caminho onde não se sabe onde pisar.

– Que sensação maluca ­– disse baixo pensando alto.

Cessou-se o violino. E aquele homem altivo estava preste a se despedir. Passou então pela rosa no chão e juntou-a contra o peito recolhendo suas pétalas que haviam se soltado. Voltou-se à harpista e lhe acariciou o rosto suavemente numa redenção de quem sabe que perdeu definitivamente algo crucial para a existência de sua alma tão extravagante e galanteadora. Abandonou o palco com passos mansos e curtos como de quem jamais será feliz novamente. Agora era o momento dela. Era a hora de convidar-nos a todos para um passeio entre montanhas e cavernas, de nos induzir a esquecer de qualquer pudor que nos fizesse humano, de nos acorrentar a feridas que já havíamos esquecido, de ostentar um ambiente melancólico porém aconchegante.

Ton Lupes

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