JOSUÉ DE CASTRO: CANAÃ É POSSÍVEL
América Latina. 54 milhões de pessoas passam fome. 211 milhões de latino-americanos e caribenhos vivem abaixo da linha da pobreza. África. 315 milhões de pessoas conhecem as formas extremas do flagelo dessa mazela. Grande parte de sua população sobrevive com apenas 57 centavos de dólar diários. Calcula-se que 840 milhões de pessoas em todo o mundo sejam vítimas da falta de alimentação. A cada 3,5 segundos morre um ser humano faminto. Em 7 segundos, uma criança com menos de 10 anos morre direta ou indiretamente de fome. 100.000 pessoas, por dia, morrem de insuficiência alimentar ou de suas conseqüências. O mundo está um caos. A sensação que temos é que reinam a fome e a miséria humana. Parece que só uma providência divina poderia ser a nossa salvação.
Salvação: salvar com ação. Essa palavra permite-nos reportar a Josué, nome bíblico que significa “Jeová é Salvação”, e no grego, “Jesus”. Josué, integrante da tribo de Efraim, foi discípulo e sucessor de Moisés. Durante a peregrinação no deserto, contribuiu para organizar o povo, que deveria ser educado para a nova fase que viria. A unidade deveria ser alcançada, uma consciência étnica era necessária. O povo deveria se preparar para assimilar a nova vida na Terra Prometida, deixando para trás os tempos de escravidão e fome no Egito. Chefiou a invasão de Canaã, onde a terra era fértil, de boa qualidade e dela manava leite e mel. Após a conquista, supervisionou a distribuição da terra entre os israelitas. Esteve com Moisés no monte Sinai, foi um dos doze espias que primeiro observaram a Terra Prometida. Junto com Caleb conquistou o direito de viver em Canaã, graças a sua fé!
É um belo exemplo de perseverança e de atitude. O mundo precisa mais do que nunca de alguns Josués como esse, que resgatem a fé na capacidade humana de construir uma sociedade justa, com menos exclusão. Seria isso possível?
Acreditamos que sim. Nós brasileiros temos o nosso Josué!
Sempre interessado no espetáculo do mundo e da vida, viveu aqui Josué: cientista, escritor, sociólogo, homem público, patriota e clarividente. Sabia como poucos das injustiças, das mazelas sociais e, sobretudo, da fome. Porta-voz do mundo subdesenvolvido, quebrou um tabu da nossa civilização ocidental e trouxe à tona esse problema mundial, apontando causas, conseqüências e, principalmente, soluções para erradicar ou pelo menos diminuir esse mal que atinge epidêmica ou endemicamente as grandes massas humanas.
Estamos nos referindo a Josué de Castro: recifense, nascido em 1908. Foi em sua terra natal que, desde pequeno, sentiu formigar dentro de si a terrível descoberta da fome. Principalmente nas áreas de mangue, onde os homens para sobreviverem, assemelham-se em tudo aos caranguejos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo - o leite de lama -, faziam-se irmãos de leite destes crustáceos. Tornavam-se seres anfíbios: metade homens e metade bichos que, à medida que iam crescendo, caranguejos e homens davam a impressão de irem se atolando cada vez mais na lama.
Mais tarde, nosso herói verificou que, no cenário da fome no Nordeste brasileiro, os mangues eram verdadeiras Canaãs, atraindo pessoas vindas de regiões de mais miséria ainda: as zonas da seca e as zonas da cana, onde a monocultora indústria açucareira esmagava a cana e o homem indiferentemente, reduzindo tudo a bagaço.
Quando cresceu e saiu pelo mundo, descobriu que aquilo que julgava ser um acontecimento local era, na verdade, um drama universal. A fome é um fenômeno geograficamente global: dois terços da humanidade sofrem de maneira epidêmica ou endêmica os efeitos destruidores desse flagelo.
Afinal, o capitalismo monopolista e o neocolonialismo econômico que regem o mundo hoje e aos quais estão submetidos os países de economia primária, dependente e subdesenvolvida, são razões para serem estes também os países da fome. Neste quadro, encontram-se nações da África, do Oriente Médio, da Ásia do Sul e do Leste, da América Latina e do Caribe.
Assim sendo, para combatermos o subdesenvolvimento e a fome, precisamos traçar uma estratégia global de desenvolvimento, capaz de mobilizar todos os fatores de produção para o interesse coletivo. Josué de Castro preconiza que a condição de subdesenvolvido é resultado da má utilização dos recursos naturais e humanos. Desse modo, somente a expansão econômica não possibilita as mudanças necessárias ao processo de integração e interação dos diversos grupos de seres humanos, desenvolvidos ou não, dentro de um sistema macroeconômico integrado que garanta condições sociais dignas a todos.
Há de se observar, ainda, que o estágio de subdesenvolvimento implica também uma forma de sub-educação. Para combatê-la, é preciso educar bem e formar o espírito dos homens, fazendo com que sejamos capazes de ousar, pensar, refletir e passar à ação. Assim, poderemos alcançar uma economia baseada no desenvolvimento humano e equilibrada. Essa é a verdade de Josué.
Para tanto, são necessárias mudanças de comportamento e medidas convergentes por parte dos países ricos e dos periféricos, em prol do verdadeiro desenvolvimento: o do homem. O cérebro humano deve ser a fábrica e o homem, o fator e o beneficitário desse desenvolvimento. Afinal, os produtos é que devem estar a serviço da humanidade, e não inverso. Não podemos reificar a grandeza humana.
Ademais, o problema da fome não é apenas de produção insuficiente, mas também a forma como está organizado o aumento da oferta. Nisso reside a raiz da exclusão social que conduz à fome. É necessário, portanto, que toda a população do globo disponha de poder de compra para adquirir os alimentos.
Desse modo, uma agricultura de estrutura feudal constitui um fator negativo para o abastecimento do país. É um regime inadequado de propriedade e que ainda predomina no Brasil, pois as relações de trabalho estão socialmente superadas e não há utilização da potencialidade dos solos.
Assim, os latifúndios representam essa estrutura, marcadamente medieval. Isso acarreta também a existência de grandes massas de sem-terra, trabalhadores de terra alheia assalariados ou até mesmo escravizados e explorados por esta engrenagem feudal. O minifúndio, por sua vez, conota uma exploração antieconômica da terra, caracterizando uma miséria crônica, sustentada pelas culturas de subsistência que, às vezes, não garantem, sequer, o sustento da família.
Diante de tais pressupostos, a Reforma Agrária é uma necessidade imediata no combate à fome. Ela não deve, todavia, reduzir-se simplesmente à desapropriação e à distribuição de terras. Outras ações são necessárias. Precisamos de uma revisão das relações jurídico-econômicas entre aqueles que detêm a propriedade agrícola e os que exercem as atividades rurais. Afinal, todos devem ser beneficitários dessa ainda utópica Reforma.
Essa utopia só se realizaria, de fato, se houvesse um equilíbrio econômico global que garantisse a segurança social do homem. É o que defende Josué de Castro. Para ele, o fosso econômico que polariza a humanidade em dois grupos: os que não comem e os que não dormem, pode causar um colapso ainda maior que o provocado pelas bombas atômicas.
Lutar contra a ordem econômica capitalista, consumista e excludente que aí está é uma tarefa árdua e difícil. Mas acreditamos que Canaã é possível. Assim como o Josué bíblico foi escolhido para habitar a Terra Prometida, o nosso Josué brasileiro atravessou mangues e oceanos para semear em nós a fé no homem. Semeou também a crença em um mundo melhor, uma terra em que a fome seja apenas uma palavra estranha no dicionário da humanidade.