Bem, não achei que seria justo me despedir com uma notinha... Então aqui está meu último texto...
Absollutamente diferente de todos os textos que até hoje escrevi a vocês... Mas essa é a intenção...
Se eu conseguir provocar alguma inquietação em algum de vocês, ficarei extremamente feliz...
Se não conseguir, ficarei um tanto decepcionada, mas nada que eu não possa superar...
O fato é que levo uma alma que não conheço e sou levada por ela. Não passo de uma peça ínfima da grande aventura da vida, um pedacinho fugaz de algo que é bem maior e mais poderoso do que eu. Trago dentro de mim a consciência que este Universo tem de si mesmo e recebi o Big-Bang como presente de batismo.
Fiquem com o texto...
Até a próxima...
MANIFESTO FILOSÓFICO
Existe um mundo. Em termos de probabilidade, isso é algo que esbarra no limite do impossível. Teria sido muito mais fidedigno se, por acaso, não existisse nada. Nesse caso, ninguém teria começado a perguntar por que não havia nada.
Ante um olhar imparcial, o mundo não se apresenta apenas como um improvável fato único, mas como uma constante carga para a razão. Quer dizer, se é que existe a razão, se é que existe uma razão neutra. Assim soa a voz de dentro. Assim soa a voz do Curinga.
A voz é articulada aqui e agora pelos descendentes dos anfíbios. Sai com a tosse dos sobrinhos dos sáurios terrestres na selva de asfalto. Os descendentes dos mamíferos peludos perguntam se existe alguma razão além deste vergonhoso casulo que não pára de crescer em todas as direções.
Alguém pergunta: quão grande é a probabilidade que algo tem de nascer do nada? Ou ao contrário, claro: que probabilidade existe de que algo tenha sempre existido? Ou, não obstante: pode-se calcular a possibilidade de que a matéria cósmica de repente, uma bela manhã, acorde consciente de si?
Se existe um Deus, ele não só é um ás em deixar vestígios, mas, sobretudo, um mestre em se esconder. E o mundo não é dos que falam além da conta. O firmamento continua calado. Não há muito mexerico entre as estrelas. Mas ninguém ainda se esqueceu da grande explosão. Desde então, o silêncio reinou ininterruptamente, e tudo que existe se afasta de tudo. Ainda é possível topar com a Lua. Ou com um cometa. Não espere que o recebam com amáveis clamores. No céu não se imprimem cartões de visita.
No princípio foi a grande explosão, e isso já faz muito tempo. Aqui só se falará do bis da noite. Ainda é possível conseguir uma entrada. Numa palavra: a recompensa consiste em criar o público do espetáculo. Sem a platéia, não teria sentido chamar de espetáculo o que aconteceu. Continua havendo lugares vagos.
Quem pôde se alegrar com os fogos de artifício cósmicos quando nada além de gelo e fogo ocupava a platéia do firmamento? Quem pôde adivinhar que esse atrevido primeiro anfíbio não apenas tinha percorrido de gatinhas um trecho a partir da margem, mas tinha dado um passo de gigante pelo longo caminho até a orgulhosa visão de conjunto do primata sobre o princípio de tal caminho? O aplauso à grande explosão só chegou quinze bilhões de anos depois de a explosão ocorrer.
Criar um mundo inteiro tem necessariamente de ser considerada uma façanha louvabilíssima, mesmo que tivesse causado ainda mais admiração se um mundo inteiro tivesse sido capaz de criar a si mesmo. E vice-versa: a experiência de ter sido criado não é nada em comparação com a incrível sensação de quem criou a si mesmo do nada e pode ficar de pé sem a ajuda de ninguém.
O Curinga nota que cresce por si mesmo, nota que não é simplesmente produto da sua imaginação. Nota que está crescendo esmalte e marfim em seu focinho antropomorfo. Nota o leve peso das costelas do primata sob a camiseta, nota o pulso rítmico que bate sem cessar, bombeando o líquido quente por todo o corpo.
Não é de estranhar que o Criador, segundo dizem, tenha retrocedido um passo ou dois quando modelou o homem, com terra que pegou no chão, soprando-lhe vida pelo nariz para transformá-lo numa criatura viva. O mais surpreendente desse acontecimento foi a falta de espanto de Adão.
O Curinga se move entre os elfos de açúcar em forma de primata. Baixa os olhos e vê duas mãos desconhecidas, acaricia com uma das mãos um rosto que não conhece, toca sua testa e sabe que ali dentro age como um fantasma o enigma do eu, o plasma da alma, a gelatina do conhecimento. Mais perto do núcleo das coisas não poderá chagar. Tem a sensação de ser um cérebro transplantado, logo já não é ele.co que bate sem cessar, bombeando o lb a camiseta, nota o pulso r
Um grande anseio percorre o mundo. Quanto maior e mais poderosa é uma coisa, mais profunda a melancolia após o parto. Quem ouve a melancolia de um grão de areia? Quem presta ouvido ao anseio do pilho? Se não existisse nada, ninguém sentiria falta de nada.
Levamos uma alma que não conhecemos e somos levados por ela. Quando o enigma se ergue sobre duas patas sem ter sido solucionado, é que chegou a nossa vez. Quando as imagens sonhadas beliscam o próprio braço sem acordar, somos nós. Porque somos o enigma que ninguém sabe resolver. Somos o conto encerrado em sua própria imagem. Somos os que andamos sem parar e nunca chegamos à claridade.
Há algo que aguça os ouvidos e abre os olhos de par em par: subindo dentre as línguas de fogo, subindo da pesada sopa de matéria primitiva, subindo pelas cavernas, subindo por cima dos horizontes das estepes.
O caminho misterioso não vai para dentro, mas para fora, não entra nos labirintos, mas sai deles. O caminho misterioso sobe por frias névoas de hidrogênio, braços de espiral rotativos e supernovas que explodem. A última etapa foi um tecido de macromoléculas autoconstruídas.
A teia da aranha dos segredos da estirpe se estende dos micropuzzles da sopa da matéria aos crossopterígios videntes e anfíbios de vanguarda. Répteis que põe ovos, prossímios acrobáticos e nostálgicos antropomorfos foram prestando com muito cuidado seu testemunho. Escondia-se uma auto-percepção ultralatente bem dentro do cérebro do réptil? Algum antropomorfo excêntrico percebia de vez em quando um adormecido indício do plano geral?
Como uma névoa enfeitiçada, eleva-se a visão de conjunto através da névoa, subindo da névoa. O enfastiado meio-irmão do neanderthal toca a testa e sabe que atrás do osso frontal do primata nada a branca massa cerebral, o piloto automático da viagem da evolução, o airbag do festival de proteínas entre coisa e pensamento.
O grande salto tem lugar no picadeiro do circo cerebral tetrápode. É aí que se informa sobre os últimos triunfos da família. Nos neurônios dos vertebrados de sangue quente saltam as primeiras rolhas de champanhe. Primatas pós-modernos chegam enfim à grande visão do conjunto. E não se espantem: o Universo vê a si mesmo em grande angular.
O vertebrado olha de repente para trás e contempla a misteriosa cauda da estirpe na imagem do espelho retrospectivo da noite dos anos-luz. Por fim, o caminho enigmático chegou a seu destino, e seu destino foi a consciência do longo caminho até o destino. Não se pode fazer outra coisa a não ser aplaudir com essas extremidades que são lançadas na conta da carteira genética da espécie.
É natural que o elefante se sinta envergonhado porque seus antepassados de repente se meteram num eterno beco sem saída. Mais horas são concedidas ao prossímio. Talvez ele tivesse um aspecto de bobo, mas pelo menos conservou o senso de orientação. Nem todos os caminhos levam ao Curinga.
Dos peixes, répteis, e pequenos e manos musanharos, o primata chique herdou um par de olhos com visão de profundidade. Os estranhos herdeiros forçados dos crossopterígios estudam a fuga das galáxias no espaço celeste e sabem que o olhar demorou bilhões de anos para focalizar algo. As lentes são compostas de macromoléculas polidas. O olhar pode focalizar algo graças a proteínas hiperintegradas e aminoácidos.
No globo ocular colidem a visão e a percepção, a criação e a reflexão. As esferas oculares de Jano são uma porta giratória mágica em que o espírito criador encontra a i mesmo no criado. O olho que olha para o Universo é o olho do próprio Universo.
Os elfos não são virtuais, são vertebrados. Ovas eles são, ovos de sapo, crias mutantes de répteis. Os elfos são vertebrados pentadáctilos, os legítimos herdeiros do musanharo, primatas sem cauda que descem das árvores na reverberação sem graça do pré-histórico toque do tímpano.
Os elfos não vêm de fora, mas de dentro. São teias de aranha microinspiradas das alocadas aranhas de DNA. Colônias de células hiperdiferenciadas eles são. Não são fantasia, mas conto de fadas, contos concretos de fada.
O planeta vivo é atualmente administrados por bilhões de primatas superindividuais. Os exemplares provêm em sua totalidade da mesma baía e do mesmo ventre crossopterígio. Jamais dois elfos foram idênticos. Até agora os elfos nunca aterrissaram exatamente no mesmo planeta.
O Curinga se encontra no fim do caminho misterioso. Sabe que usa uma bagagem antiga, não de bolsas e maletas, mas de cada célula do corpo. Vê como o planeta continua soprando suas elaboradas esculturas de DNA conforme medidas internas microinspiradas. Quem é o elefante do ano? Onde está o avestruz do ano? Quem é atualmente o primata mais famoso do mundo?
Os elfos estão agora no conto, mas são aquilo para o que não há palavra. Seria o conto um verdadeiro conto se fosse capaz de ver a si mesmo? Causaria impacto a vida diária se estivesse constantemente se explicando a si mesma?
Os elfos de açúcar estão a todo momento mais vivos do que bem-comportados, mais fantásticos do que confiáveis, mais misteriosos do que são capazes de entender com sua pouca razão. Como besouros enjoados zumbem de flor em flor numa sonolenta tarde de agosto, os elfos de açúcar da temporada se aferram a seus habitats urbanos no espaço celeste. Só o Curinga se libertou.
Os elfos apontam seus radiotelescópios para distantes nebulosas na periferia do conto invertido. Mas o fantástico não se deixa entender de dentro, e os elfos são a parte de dentro. Os elfos vivem em seu próprio mundo. Estão encapsulados pelo campo gravitacional ontológico desse enigma. São o que há, e para isso não existe compreensão, somente extensão.
A uma altura de quarenta mil pés estão sentados comodamente os primos distantes do peixe, olhando para as luzes das casas de Hansel e Gretel. Ainda que a luz se fosse, continuariam andando ali embaixo na penumbra. Ainda que se apagassem todas as lâmpadas, subiria uma aura do solo.
Inicia-se a manhã em Elfolândia, e ainda está bastante escuro, embora cem mil luzes interiores ardam em fogo baixo antes de se acenderem as lâmpadas elétricas. Os elfos de açúcar começaram a se retorcer para sair de seus sonhos fleumáticos, mas as células de seu cérebro continuam projetando filmes umas para as outras. O filme está sentado na sala vendo a si mesmo na tela.
Os elfos tentam pensar alguns pensamentos tão difíceis de pensar que não são capazes de pensá-los. Mas não conseguem. As imagens da tela de cinema não saltam para a sala de cinema para atacar o projetor. Só o Curinga acha seu caminho entre as filas de cadeiras.
Os elfos representam seus papéis hiperimprovisados no teatro mágico da civilização. Cada um deles se identifica tanto com o papel que o espetáculo nunca tem público. Não há alheios, não há olhares recostados, só o Curinga dá um passo para trás.
Mamãe Elfo está diante do espelho contemplando os cabelos louros que caem sobre seus ombros delicados. Acha que é o primata mais maravilhoso do mundo. Pelo chão engatinham os nenéns elfos com as mãos cheias de pequenas peças de plástico de cores vivas. Papai Elfo está refestelado no sofá com a cabeça escondida sob um jornal cor-de-rosa. Acha que a vida diária é sólida.
Éons depois de o sol se transformar numa gigante vermelha, ainda se podem perceber alguns sinais de rádio dispersos na nebulosa. Poá a camisa Antonio? Vem já com a mamãe! Faltam só quatro semanas para o Natal.
Na escuridão dos ventres avultados nadam a todo instante vários milhões de casulos de uma flamante consciência do mundo. Desvalidos elfos de açúcar saem por pressão um a um, quando estão maduros e são capazes de respirar. Ainda não podem tomar outro alimento senão um adocicado leite de elfo que sai jorrando de um par de suaves botões de carne de elfo.
O guri de elfo de açúcar vestindo um macacão azul está para comê-lo. Mamãe Elfo o vê balançar num pedaço de pau preso a um par de grossas cordas que pendem de um galho da grande pereira. Assim ela pode fazer as contas das centelhas vespertinas do grande fogo milagroso. Controla tudo o que há no pequeno jardim, mas não vê a bengala que interrelaciona todos os jardins.
A Dama de Copas é sua própria flor. Quando quer decorar o salão ou se encontrar com seu amado, colhe a i mesma. Decerto, toda uma mostra de habilidade, sabe que é uma espécie rara. As tulipas estão loucas de vontade de fazer a mesma coisa. As margaridas olham com inveja para ela. Os lírios fazem profundas reverências.
Ao morrer, como quando a cena está fixada no rolo do filme e os cenários foram derrubados e queimados, somos fantasmas na lembrança que nossos descendentes guardam de nós. Então somos fantasmas, querido, somos mito. Mas ainda estamos juntos, ainda somos um passado comum, um passado distante, é o que somos. Debaixo de um relógio de passado mítico ainda ouço sua voz.
O Curinga ronda intranqüilo entre o elfos de açúcar como um espião num conto de fadas. Faz suas reflexões, mas não tem nenhuma autoridade a quem informar. Só o Curinga é que vê. Só o Curinga vê o que é.
Que pensam os elfos no momento de serem paridos e chegam completos e desenvolvidos a um dia flamejante? Que dizem as estatísticas sobre isso? É o Curinga que pergunta. Ele mesmo tem um sobressalto cada vez que ocorre o pequeno milagre, descobre-se como que num jogo de manhã da criação. Dessa maneira saúda a criação da manhã.
O Curinga acorda de sonhos desconexos para uma realidade de carne e osso. Apressa-se a colher os frutos da noite, antes que o dia os amadureça demais. É agora ou nunca. É agora, e nunca mais. O Curinga compreende que não pode sair duas vezes da mesma cama.
O Curinga é um boneco mecânico que se quebra em pedaços todas as noites. Quando acorda, recolhe braços e pernas e os compõe de novo para que o boneco volte a ser como no dia anterior. Quantos braços havia? Quantas pernas? E, depois, uma cabeça com um par de olhos antes de poder se levantar.
O Curinga acorda numa almofada dentro de um disco rígido orgânico. Nota como tenta chegar à praia de um novo dia a partir da cálida corrente de miragens mal digeridas. Qual é a energia nuclear que acende os corações dos elfos? Quais são as turbinas que propulsam os fogos artificiais da consciência? Qual é a força atômica que une as células cerebrais da alma?
Nota como voa no vazio. Não pode continuar assim. Não terá merecido se aproximar mais um passo? O Curinga faz alguns movimentos obstinados diante do espelho do armário, tenta roubar do duplo da alma um piscar de olhos cheio de compreensão. Mas tudo é como antes. Aperta os dentes, belisca-se o milagre.
De repente está sentado na cadeira de montar numa fileira de alfa a ômega condenada à morte. Não se lembra de ter montado a cavalo, mas nota como os potros da vida galopam debaixo dele e é levantado por forças míticas para uma repentina parada.
O Curinga é tão rico em passado que num instante embriagador se sente infinitamente robusto. Quantas gerações desde a primeira divisão celular? Quantos partos pode incluir desde o primeiro mamífero? É o momento dos grandes números. Acaso já não havia iniciado essa reflexão matutina quando o primeiro peixe irrompeu na quietude da água? De repente o pequeno bufão se sente incuravelmente enjoado. Rico em passado, sim, ele é. Mas não tem futuro. Rico em história ele é. Mas não é nada depois.
O Curinga é um anjo em apuros. Por causa de um mal entendido fatal, vestiu-se de carne e osso. Só queria compartilhar as condições dos primatas durante alguns segundos cósmicos, e teve o azar de puxar a escada celestial e descê-la com ele. Se ninguém o recolher já, o relógio biológico andará cada vez mais depressa, e ficará tarde demais para regressar ao reino dos céus.
A porta do conto está aberta de par em par. Está claro que alguém deveria informar sobre isso, mas não há nenhuma autoridade a quem comunicá-lo. O Curinga é arrastado inexoravelmente para a fria corrente do que não existe fora. Enxuga uma lágrima, não, está chorando de verdade. É assim que o frágil bufão diz seu triste adeus. Sabe que não pode regatear. Sabe que o mundo nunca voltará.
O Curinga só está presente em parte no mundo dos elfos. Sabe que vai embora, e por isso acertou suas contas. Sabe que vai desaparecer do todo, e por isso já está meio desaparecido. Vem de tudo o que há e não vai para lugar nenhum. Quando chegar ao destino, não poderá nem sonhar em voltar. Irá para o país onde nem sequer se dorme.
Quanto mais o Curinga se aproxima da extinção eterna, maior é a clareza com que vê o animal que o cumprimenta no espelho ao enfrentar um novo dia. Não acha consolo no olhar aflito de um primata de luto. Vê um peixe enfeitiçado, um sapo metamorfoseado, uma lagartixa deforme. É o fim do mundo, pensa. Aqui acaba abruptamente a longa viagem da evolução.
Precisa-se de bilhões de anos para criar um ser humano. E ele só precisa de alguns segundos para morrer.